Nélia Duarte
Sarilhos
Ela parou, abrupta, virou-se para mim e despejou tudo em alemão. Pestanejei, primeiro, depois disse-lhe ich bin Luft. O impermeável dela enfunou-se e ela aconchegou-o lançando-me uma chispa de rancor. Vendo a minha boca cerrada, ela inspeccionou-me minuciosa e estremeceu num arrepio de dúvida. Arriscou, então, de fininho: luft?, enquanto se abraçava ao impermeável e abria ligeiramente os pés para melhor se fixar ao solo. Eu não estava propriamente divertida com aquilo de lhe ter dito que era ar, eu só queria que ela percebesse que eu não a havia entendido. Depois de alguma indecisão ela afastou-se do promontório e seguiu caminho. Sorrateira virou, ligeiramente, o rosto, eu já lá não estava e ela esbracejou ao acaso, irada, tentando acertar-me na boca.
texto escrito em Março de 2006